A urgência de uma agência reguladora no setor veterinário
Cenário atual abre espaço para atrasos, insegurança jurídica e riscos sanitários
por Marcio Mota em
e atualizado em
A urgência da criação de uma agência reguladora nasce da combinação de lacunas regulatórias atuais, riscos crescentes à saúde única (One Health), atrasos na liberação de inovações e uma fiscalização insuficiente diante do tamanho e da complexidade do mercado veterinário brasileiro. Uma agência dedicada garantiria foco, velocidade, previsibilidade e melhor coordenação para um setor que impacta diretamente animais, pessoas e o negócios.
Fragmentação e lacunas do modelo atual
- Múltiplas competências dispersas: hoje há atribuições divididas entre MAPA (defesa agropecuária, produtos de uso veterinário), órgãos estaduais/municipais e outros entes. Para itens de interface (ex.: diagnósticos in vitro veterinários, dispositivos, sanitizantes de uso em ambientes com animais, publicidade), surgem zonas cinzentas ou sobreposições
- Efeitos práticos dessa fragmentação: as consequências incluem regras não uniformes e previsibilidade baixa; fluxos de registro e pós-mercado diferentes conforme o produto/serviço; custos de conformidade maiores para empresas e profissionais; e dificuldade de coordenação em crises (surto, recall, desabastecimento)
Uma agência setorial reduziria duplicidades e consolidaria o ecossistema veterinário.
One Health e risco sanitário crescente
- Resistência antimicrobiana (RAM): o uso de antibióticos em animais de companhia e de produção influencia diretamente a RAM, tema crítico global. Uma autoridade com foco veterinário poderia estabelecer e fiscalizar programas robustos de stewardship, farmacovigilância e uso responsável
- Farmacovigilância e tecnovigilância: eventos adversos em fármacos, biológicos, dispositivos e testes diagnósticos veterinários, muitas vezes, são subnotificados. Uma agência dedicada fortaleceria a notificação e análise de eventos adversos, planos de gerenciamento de risco e ações corretivas rápidas (ex.: recall)
- Interface zoonótica: animais convivem com humanos e falhas regulatórias podem transbordar para a saúde pública. Uma agência setorial melhoraria a coordenação com saúde humana e defesa agropecuária
Atrasos e incerteza para inovação
- Tempo de registro e backlog: o setor relata filas e prazos longos para aprovar medicamentos, vacinas, biológicos, diagnósticos e novas tecnologias
- Consequências: o cenário leva ao acesso tardio a terapias modernas (ex.: vacinas autógenas, terapias biológicas, probióticos de nova geração, diagnósticos point-of-care), desestimulando novos projetos de P&D e a atração de investimentos
- O que uma agência dedicada pode fazer: seria possível estabelecer procedimentos diferenciados (fast-track, reliance, análise por risco), em. harmonização com padrões internacionais (VICH, EMA/CVMP, FDA/CVM) e com maior previsibilidade por meio de guias e consultas públicas
Fiscalização e combate à informalidade
- Crescimento do comércio online e marketplaces aumenta o risco de: venda de produtos irregulares, contrabandeados ou sem prescrição. Armazenamento/transporte inadequados (quebra de cadeia fria)
- Estabelecimentos e serviços: farmácias de manipulação veterinária, clínicas, hospitais e laboratórios precisam de padrões consistentes de qualidade e biossegurança
- Uma agência única fortaleceria inspeção, rastreabilidade, sanções proporcionais e cooperação com estados/municípios
Serviços veterinários e qualidade assistencial
- Falta de normativas uniformes sobre: prontuário eletrônico, prescrição digital e proteção de dados do tutor. Padrões mínimos de infraestrutura, radioproteção, biossegurança e acreditação para clínicas/hospitais/labs
- Benefício de uma agência: marcos claros que aumentam segurança do paciente animal e responsabilização; e regras para publicidade, promoção e material informativo, coibindo práticas enganosas
Proteção do consumidor e do bem-estar animal
- Rotulagem, instruções de uso, advertências e materiais de apoio muitas vezes carecem de padronização ou clareza.
- Regras de bem-estar animal beneficiam-se de uma autoridade técnica com foco no paciente animal, harmonizada com guias internacionais
- Mais transparência: publicações periódicas de dados de segurança, inspeções, recalls e desempenho regulatório.
Competitividade do Brasil e alinhamento internacional
- O Brasil é um dos maiores mercados pet/vet do mundo e um gigante do agronegócio. um arcabouço moderno facilita a exportação e o registro internacional por meio de convergência regulatória (VICH, EMA, FDA). Também atrai centros de P&D e novos estudos clínicos veterinários para testar tecnologias inovadoras de forma segura.
Governança, transparência e previsibilidade
- Uma agência reguladora típica opera com: autonomia administrativa e orçamento próprio; agenda regulatória pública, com AIR (Análise de Impacto Regulatório) e consultas públicas; além de indicadores de desempenho (prazos médios de análise, qualidade, produtividade)
- Resultado: maior confiança de profissionais, indústria e sociedade
O que poderia ficar no escopo de uma agência veterinária
- Registro, pós-mercado e fiscalização de: medicamentos, biológicos e terapias avançadas de uso veterinário. Dispositivos e diagnósticos in vitro veterinários. Boas práticas (GMP, GDP, GVP) e farmacovigilância
- Regras para serviços: clínicas, hospitais, laboratórios, telemedicina, prescrição eletrônica e publicidade
- Programas de risco: stewardship antimicrobiano, recall, rastreabilidade, controle de produtos em e-commerce
- Coordenação intersetorial: integração com MAPA (defesa agropecuária), saúde humana e entes subnacionais, alinhando One Health
Benefícios esperados
- Para profissionais e tutores: acesso mais rápido a produtos seguros e eficazes. Serviços com padrões mínimos de qualidade e segurança
- Para a indústria: prazos e critérios mais previsíveis, redução de incerteza e custos. Melhores práticas de conformidade e integração internacional
- Para o Estado: capacidade reforçada de resposta a crises e de fiscalização inteligente, com base em dados. Redução de assimetrias informacionais e da informalidade
Riscos e desafios (e como mitigá-los)
- Sobreposição de competências e transição institucional: exige lei clara, acordos de cooperação e cronograma de migração de processos
- Custo e complexidade de implantação: planejamento orçamentário, estruturação de carreiras e investimentos em laboratórios
- Risco de “mais burocracia”: mitigar com gestão por risco, digitalização, prazos legais e metas de desempenho público
- Coordenação federativa: convênios e sistemas integrados de informação com estados e municípios
Referências e modelos internacionais
- EUA: FDA/Center for Veterinary Medicine (CVM) regula medicamentos e alguns aspectos de alimentos para animais
- União Europeia: EMA/Committee for Medicinal Products for Veterinary Use (CVMP) coordena avaliação científica e harmonização
- VICH: cooperação internacional para harmonização de requisitos técnicos de registro de medicamentos veterinários. Esses modelos servem como referência para práticas de risco, guias técnicos e transparência
Enfim, a criação de uma agência reguladora específica para o setor veterinário deixou de ser uma ambição corporativa para tornar-se uma necessidade pública. Diante de lacunas regulatórias persistentes, da lógica One Health que integra saúde animal, humana e ambiental, e de um mercado em rápida expansão e complexificação, um órgão dedicado é o caminho mais eficaz para dar foco, velocidade e previsibilidade às decisões que impactam diretamente tutores, profissionais, indústria e o agronegócio.
Com uma autoridade especializada, o país ganha regras claras para inovação (prazos definidos de registro e avaliação de risco-benefício), fiscalização mais inteligente e proporcional ao risco, e uma coordenação interinstitucional capaz de reduzir sobreposições e vazios entre esferas federal, estadual e municipal.
Setores sensíveis – como planos de saúde animal, telemedicina veterinária, farmacovigilância, comércio eletrônico de insumos e medicamentos, rastreabilidade e biossegurança – passam a operar com parâmetros objetivos, protegendo o consumidor, valorizando o bom exercício profissional e elevando o padrão de qualidade do mercado.
O custo de não agir é alto. Perpetuam-se assimetrias de informação, insegurança jurídica, atraso na incorporação de tecnologias, riscos sanitários submonitorados e conflitos que acabam judicializados. Ao contrário, uma regulação moderna e responsiva acelera a inovação segura, estimula investimentos, melhora a competitividade internacional do Brasil e fortalece a confiança social no ecossistema veterinário.
Para transformar consenso técnico em avanço institucional, alguns passos são imediatos:
- Construir uma coalizão ampla, envolvendo entidades veterinárias, academia, indústria, agronegócio e defesa do consumidor, com mensagem unificada e baseada em evidências
- Estabelecer uma agenda legislativa realista, com proposta de governança, fontes de financiamento e metas de desempenho (SLA de análise, transparência de dados, indicadores de farmacovigilância)
- Pilotar instrumentos regulatórios (sandboxes, guias técnicos, bases de dados interoperáveis) que gerem resultados rápidos e mensuráveis em 12 a 36 meses
Em síntese, o Brasil tem a oportunidade de alinhar a regulação veterinária aos melhores padrões internacionais, com benefícios diretos para animais, pessoas e a economia. Uma agência dedicada não é apenas uma resposta às urgências atuais, mas um investimento estrutural na saúde, na inovação e na confiança de todo o setor. Agora é o momento de convergir esforços — técnicos, políticos e sociais — para que essa agenda se traduza em um marco regulatório robusto, eficiente e sustentável.