Genéricos veterinários podem destravar o mercado
Categoria está sancionada desde 2012 e pode ser tema de consulta pública em breve
por Marcia Arbache em
Sancionada em 2012, a lei que criou os medicamentos genéricos veterinários ainda não produziu efeito prático e nenhum produto dessa classe chegou às gôndolas brasileiras até hoje. Mas o atraso, que já causa estranheza até entre especialistas do setor, está prestes a mudar. É o que indica Henrique Tada, presidente executivo da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac).
Tada explica que, por muitos anos, o mercado conviveu com dúvidas e falta de clareza técnica sobre como comprovar eficácia e segurança dos genéricos para uso veterinário. “Existe ainda um certo desconhecimento por parte das empresas sobre como essa classe funciona. Como comprovar eficácia e segurança? Como conduzir os estudos? Isso sempre travou o processo”, afirmou.
Estrutura sólida e qualificada para genéricos humanos serve a estudos veterinários
Segundo ele, quando os genéricos humanos começaram a ser registrados, no início dos anos 2000, o Brasil enfrentava uma grande carência de infraestrutura laboratorial, conhecimento técnico e profissionais capacitados. O segmento veterinário acabou herdando essa limitação. Hoje, contudo, o cenário mudou completamente. ‘’Temos médicos, biólogos, farmacêuticos e pesquisadores aptos a conduzir esses estudos’’, pontua.
Tada destaca que o país desenvolveu, ao longo das últimas duas décadas, uma estrutura sólida graças ao sucesso dos genéricos de uso humano. “A indústria dispõe de um know-how e uma infraestrutura muito bem estabelecidas. Os centros que fazem estudos de bioequivalência para a saúde humana conseguem perfeitamente realizar estudos para genéricos veterinários”, afirma.
O presidente da Alanac explica que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), responsável pela regulamentação, já publicou uma minuta de norma e está prestes a abrir consulta pública. A regulamentação definitiva, acredita ele, deve finalmente viabilizar o lançamento desses medicamentos no país. “O governo manifestou grande interesse em destravar esse segmento que deveria estar ativo há mais de uma década’’, frisa.
Competição pode reduzir custos para o tutor e para o produtor rural
Do lado da indústria, destaca, há preparo total para iniciar a produção assim que os registros forem aprovados. “As empresas já existem, têm capacidade instalada e utilizam matérias-primas que já dominam. Uma vez registrado o produto, a fabricação não é demorada”, explica Tada.
Com a entrada dos genéricos, o mercado deve se beneficiar de aumento da concorrência e redução de preços, tanto para tutores de animais de companhia quanto para produtores rurais. “Quando você aumenta o acesso e a quantidade de produtos, isso acaba beneficiando o consumidor, com custos menores por conta da competição”, analisa.

Campanha de esclarecimento para vencer resistência inicial
O executivo acredita que, assim como ocorreu com os medicamentos genéricos para humanos, haverá necessidade de campanhas de esclarecimento, especialmente para veterinários e consumidores que podem duvidar da equivalência dos novos produtos. “Quando lançou o genérico humano, também houve dúvidas. Mas hoje ninguém mais questiona. Eu mesmo uso medicamentos genéricos há décadas”, comenta.
Exigências regulatórias pesadas e pouco harmonizadas explicam atraso
Para a advogada Daniela Jambor, especialista em direito regulatório para o setor pet e colunista do Panorama Pet&Vet, uma combinação de obstáculos regulatórios, econômicos e estruturais concorre para que os genéricos veterinários ainda não tenham se consolidado no país. Um deles são as exigências técnicas do MAPA. ‘’O registro de um genérico exige comprovação da bioequivalência em relação ao produto de referência e os estudos são custosos e demorados’’, comenta.
Segundo Daniela, havia, até pouco tempo, em determinadas situações, uma avaliação caso a caso, mas sem critérios totalmente claros. ‘’Em setembro de 2025, o MAPA publicou uma nota técnica que tende a facilitar esse procedimento, mas não sei se é suficiente para melhorar esse cenário’’ diz.
Outro entrave é a falta de harmonização plena entre as exigências brasileiras e as internacionais. “Se houvesse uma equivalência maior entre os requisitos técnicos daqui e os de outros países, seria possível aproveitar estudos feitos no exterior, reduzindo custos”, afirma. Hoje, essa diferença acaba elevando ainda mais o investimento necessário para a produção desses medicamentos.

Proteção ao dossiê e lentidão no processo
Os processos envolvendo a propriedade intelectual também pesam. No registro de medicamentos, as empresas apresentam um dossiê com dados de eficácia, segurança e composição do produto. No mercado veterinário, o prazo de proteção dessas informações é mais longo do que no setor de saúde humana, regulado pela Anvisa. “Isso dificulta o acesso às informações técnicas necessárias para desenvolver um genérico”, explica Daniela.
O resultado é um processo de aprovação lento, caro e que frequentemente gera perda da chamada “janela competitiva”. “Se eu demoro anos para lançar um genérico, quando finalmente chego ao mercado já perdi o melhor momento de competição. E com custos tão altos, o genérico acaba ficando quase no mesmo preço de um produto novo”, resume.
Baixa atratividade econômica
Na prática, muitas empresas concluem que lançar um produto de marca pode ser mais vantajoso financeiramente. “Se o custo do dossiê é praticamente o mesmo para um produto novo e para um genérico, por que lançar um genérico e ganhar menos?”, questiona a advogada. “Com um produto de marca, a empresa consegue trabalhar preços mais altos e margens maiores. Esse aspecto torna o planejamento de um genérico muito mais complexo”, ressalta.
Daniela também chama atenção para as próprias características do mercado veterinário brasileiro. Além da forte presença de produtos de referência já consolidados, o setor é extremamente pulverizado, abrangendo desde animais de companhia até os de produção. “Um antiparasitário, por exemplo, pode ser viável para um cachorro, mas não necessariamente para uma bovino”, exemplifica.
Interesse real x contas finais
Além disso, as grandes redes no varejo pet intensificaram a concorrência, pressionando margens e dificultando a sobrevivência de pequenas clínicas veterinárias e pet shops independentes. “A grande rede tem mais fôlego para reduzir preços, oferecer entrega rápida e integrar loja física com aplicativo. Isso cria um ambiente ainda mais hostil para produtos genéricos, que dependem de escala para serem competitivos”, observa.
Apesar de todos esses entraves, o interesse dos investidores é real. Daniela relata que diversas empresas já a procuraram para estudar a viabilidade de projetos de genéricos veterinários. “Alguns voltam depois de anos, retomam as conversas, mas o projeto acaba esfriando quando chegam às contas finais. É muito caro”, finaliza.
Exclusividade de dados impediu avanço de genéricos veterinários
Para a PróGenéricos, associação que representa as indústrias de genéricos voltadas à saúde humana, o que impede o avanço dessa categoria no mercado veterinário é o mecanismo conhecido como data protection, em que se cria um período de exclusividade regulatória adicional às patentes.
O presidente executivo da entidade, Tiago de Moraes Vicente ressalta que o assunto está fora da competência institucional da PróGenéricos. O entendimento do dirigente, no entanto, é que a intenção do legislador ao elaborar essa política foi espelhar o mesmo sucesso dos genéricos de uso humano. ‘’Com legislação específica, normas técnicas claras, objetivas e muita informação a respeito da sua intercambialidade (substituição segura), os genéricos humanos, para os quais não há exclusividade de dados, prosperaram”, afirma.
Vicente citou a Lei no 10.603/2002 que instituiu no Brasil a proteção regulatória de dados para produtos de uso veterinário. ‘’Durante cinco a dez anos, os dados de testes do primeiro registro não podem ser utilizados pela autoridade para aprovar produtos concorrentes, salvo exceções legais’’, explica.
Além disso, Vicente destacou o impacto negativo do preço. ‘’O medicamento genérico de uso humano, como qualquer medicamento, tem seu preço controlado por uma Câmara de Regulação e ingressa no mercado, obrigatoriamente, 35% mais barato. Isso não acontece no medicamento de uso veterinário”, complementa.
Evidências científicas e fiscalização consolidaram genérico humano
A adesão por parte da população veio do do entendimento de que o genérico entrega o mesmo princípio ativo, qualidade e eficácia do medicamento de referência. ‘’Houve um trabalho consistente de regulação, comprovação de bioequivalência, transparência na rotulagem e comunicação contínua com médicos, farmacêuticos e pacientes. Com confiança e preços mais competitivos, o uso se consolidou rapidamente’’, lembra.
Em relação à fabricação dessa classe de medicamentos, Vicente alerta que é importante desfazer o mito que algumas pessoas ainda podem alimentar: genéricos não nascem em fábricas “à parte”. ‘’Onde há Boas Práticas de Fabricação (BPF), equipes qualificadas, equipamentos validados e controles rígidos – ou seja, onde se produz um medicamento de marca – também sai o genérico. Não tivemos que adaptar plantas, mas sim expandir a capacidade’’, assinala.
Com a elevação da demanda, criaram-se mais turnos de trabalho e novas linhas de investimento para aumentar a produção, a logística e o controle de qualidade. O ciclo se completou com escala, concorrência e previsibilidade regulatória. Os resultados foram ‘’mais oferta, preços mais acessíveis e maior acesso da população’’, enfatiza.
Desinformação nas redes sociais gera dúvidas sobre qualidade
Mesmo após 26 anos e cerca de 40% de participação de mercado, Vicente lamenta que os genéricos ainda enfrentam a desinformação que, nas redes, ‘’pode ganhar alcance desproporcional’’. ’Nosso antídoto é informação de qualidade, transparência e fiscalização. Genérico não é sinônimo de menor qualidade; é sinônimo de mesma eficácia com melhor preço. A lógica de que quanto mais caro, melhor não se aplica aqui’’, sustenta.
Ele admite, no entanto que ao longo da evolução do mercado de genéricos para humanos houve resistência e, ‘’infelizmente, ainda existe’’. As motivações variam e algumas, inclusive, são questionáveis do ponto de vista ético. ‘’É um obstáculo que precisamos enfrentar diariamente. As redes sociais, apesar de trazerem benefícios, também potencializam a desinformação. No caso dos medicamentos de uso veterinário, as resistências e motivações podem ser semelhantes’’, pontua.
Segundo ele, não são raros os casos de profissionais que usam seus perfis para promover um laboratório específico e descredenciar os demais. ‘’Ao agir assim, não se coloca em xeque apenas a indústria, mas a própria seriedade com que a Anvisa encara sua missão. Afirmar que um genérico “não tem o mesmo efeito” equivale a sugerir que a agência não o avaliou adequadamente’’, assinala
Para Vicente, esse raciocínio leva a deduções ainda mais inconsequentes. A de que mesmo reconhecendo a falta de equivalência, a agência teria permitido sua comercialização. ‘’Isso contraria frontalmente a missão institucional da Anvisa de proteger a saúde da população por meio do controle sanitário’’, rebate.
Receita para indústria veterinária
Para a indústria veterinária, Vicente faz a tradução prática da experiência com genéricos de uso humano. ‘’A receita não muda: marco técnico exequível, fiscalização ativa, comunicação responsável e um ambiente competitivo sem entraves desnecessários. É assim que se garante prescrição segura, produtos confiáveis e acesso mais amplo a tratamentos eficazes’’, conclui.